4 de agosto de 2009

Fim do mundo

Era noite cerrada. Daquelas que não se vê um palmo à frente do nariz. Escura como o buraco onde se meteu o Sporting. No centro da cidade erguiam-se altas estruturas cúbicas e cilíndricas, cinzentas e pretas. O único som naquela vastidão de altos e baixos geométricos vinha de um carrinho de cachorros quentes, empurrado por uma pequena figura arqueada. Não mais alto do que uma mesa de canto, o velho tinha a cara enrugada como um Shar-Pei (aquele cão dos anúncios, cheio de dobras). As longas barbas brancas faziam dele uma espécie de Pai-Natal dos esfomeados.

O ranger da roda esquerda daquela caixa branca, já suja do uso, entrava pelo ouvido e martelava o tímpano como a voz de Paulo Portas. De lado na caixa, podia ler-se em tipo de letra universitário e a encarnado a inscrição "salsicha quente e fresca". A originalidade da coisa normalmente até chamava a clientela, mas este dia... nem vivalma. Nem carros, nem motas, nem sequer os vagabundos lá estavam hoje. Marlene, a prostituta que costumava rondar as esquinas do bairro não estava lá. Era velha demais, feia demais e faladora demais para que alguém a quisesse levar por uma noite ou sequer por uma hora. Nunca tinha clientes, mas estava lá todos os dias. Tinha-se tornado um hábito. Este dia... não. Teria alguém perdido a cabeça e comprado o tempo de Marlene? Um cego, surdo e mudo, talvez... Mas, e os outros?

Da boca do velho do carrinho apenas duas palavras, repetidas circularmente vezes sem conta: "acabou tudo, acabou tudo, acabou tudo..." Estaria a falar de quê? Das salsichas? Das esperanças do Sporting em ganhar o campeonato? Do mundo?

Subitamente um infernal apito soou por toda a cidade. Como o alarme de um carro amplificado mil vezes, o som insistia e ficava cada vez mais alto. Não resisti mais... levantei a mão e esmurrei o despertador como se fosse a minha professora de matemática do 9º ano (eu hei-de vingar-me um dia...). Acordei sobressaltado com apenas um pensamento a percorrer-me a mente... Apetece-me salsichas!

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Fim do mundo